sexta-feira, 18 de março de 2011

Obrigado, por nada. - 1ª parte

 

Não posso me culpar por não ter entendido o primeiro pedido de socorro que recebi na vida. Eu tinha talvez 16 anos, ela mais que  o dobro, amiga da família, profissional, formada, responsável, com manias místicas e buscas sem-fim por conhecimentos ocultos, que hoje eu sei, eram uma forma de criar aos olhos dos outros e para si própria uma áura de poderes ocultos, saberes e forças - superioridade frente às coisas mundanas - que não possuía. Estava de passagem pela cidade, dormiria no apartamento da sua amiga, minha mãe.

Foi apenas uma frase, uma pequena brincadeira de boa-noite que eu fiz, (“Olha lá hein? Se for fugir mais tarde para a farra, leva a chave!”) mas que obteve na resposta (“Mas eu  nunca faço nada!”)um tom tão agudo e angustiado, um uivo não-pronunciado, um lamento. Jamais havia captado tanta carga emocional numa frase só, nem nunca mais captei. Estavam presentes em cada uma das poucas palavras o desespero, a angústia, repressão, revolta, desejos e mordaças – o som de alguém que se debate. No momento não distingui tudo isto, mas o alarme soou, sabia que havia alguma coisa bem mais forte do que apenas palavras ali, e me senti  intruso, estranho, como vislumbrar por uma porta entreaberta alguém chorando numa casa em festa. Tanto quanto implorar por socorro aquilo era um convite. Ela precisava fazer algo condenável, punível, queria o tesão do proibido, gozar com a própria baixeza, ter algo de vergonhoso para esconder dos outros. E a culpa, mais do que tudo a culpa. Uma culpa nova, diferente daquela que sentia todos os dias por fazer tudo certinho e sem surpresas e que tinha gosto de cera de vela. Esta culpa era por finalmente ser autora de algo,  por ter se sentido viva, e gostado. Por conseguir amordaçar por breves instantes a sempre presente voz da própria mãe na memória, ditando as regras, fiscalizando e reprovando tudo em sua vida, nunca satisfeita com o resultado. Eu não sabia, o tempo me contou. No momento, o desconforto de sentir o peso daqueles sentimentos não-interpretados me afastou. Demorei a dormir, sem identificar o que me perturbava. Tenho certeza de que a porta do seu quarto ficou entreaberta naquela noite.