terça-feira, 17 de março de 2009

Série "Causos"

Amigos percadores, começo hoje uma série de causos interioranos, típicos do humor pampeano. Não são propriamente causos gauchescos, poderiam ter acontecido em qualquer cidadezinha do mundo, e é aí que reside seu maior encanto. São histórias ouvidas nos finais de semana na casa grande do meu clã materno, os Vargas de São Sepé, tomando um mate enquanto o churrasco se apronta pingando sem pressa nas brasas. O linguajar adotado será o mais informal possível, já que existem expressões no dialeto pampeano que são impagáveis, e o idioma faz parte do tempero da paisagem. Em algumas histórias menos gloriosas serei obrigado a alterar os nomes dos participantes, “por descrição e prá não ser capado”, como diria um analista, conterrâneo meu. Os contos urbanos ficarão um tempo em segundo plano, mas um dia voltam.
P.s.: Talvez a palavra “Nóca” não tenha acento, mas a avó é minha e eu boto acento onde eu quiser!

Introdução
Os sepeenses são, de longe, os melhores contadores de histórias que existem. Do Rio Grande e, por extensão, do meu mundo. Talvez seja o tamanho da cidade - cerca de vinte e poucos mil habitantes desde que me conheço por gente e daqui a duzentos anos ainda vai ter perto disto - o que torna todos os moradores, no mínimo, conhecidos. Outro fator determinante é o humor típico do local, herança de uma salada de influências culturais, por conta de ser situada exatamente no meio do estado (até o sotaque é diferente, lembrando, ainda que bem de longe, o caipira mineiro). Seus contadores têm aquele perfil do negro ou índio campeiro, calmo e silencioso, que ouvia as conversas dos brancos para depois narrar suas manias e esquisitices para a peonada no galpão entre uma risada e outra. Quem pede um causo prá alguém de lá esteja preparado para ouvir milhares. Imagina então uma roda de mate com vários parentes reunidos, alimentando as memórias uns dos outros, acrescentando detalhes, num ciclo que só se encerra para a hora da bóia e se bobear, depois da sesta, periga se estender até a janta. Então te abanca, senta no sofá ou no tapete mesmo (quer um pelego macio? Esteja à vontade!), e aceita um amargo, que já começou a aparecer história:
A Iconoclasta Vó Mercês

Pois contam que a Vó Mercês (minha tia-bisavó, se é que existe a palavra) foi a parteira quando a Tia Goga nasceu. Parto prematuro e complicado, demorou horas, até que nasceu a criança. Logo em seguida, num intervalo do choro fraquinho da nenê, todos ouviram uma coruja piar bem alto no lado de fora da casa. Prá quê?!? A D.Nóca, minha avó, entrou em pânico:
- Uma coruja piou, é mau-agouro! Ai meu Deus, a criança vai morrer! Minha filha vai morrer!
Desespero entre a mulherada, reza prá cá, terço prá lá, todo mundo ajoelhado se benzendo.
Mais que depressa a Vó Mercês levantou da cadeira onde estava se recuperando da longa peleia na qual fora comandante de tropa e, com o cenho franzido e sem tirar os olhos da D. Nóca, chamou pelo próprio filho, meio por cima do ombro:
- “José!!!”- gritou. O piá entrou voando, pois sabia que só entrava em quarto onde tinha gente nascendo ou morrendo se fosse para coisa urgente.
- “José, meu filho, me pega a espingarda, vai lá fora e me mata esta coruja! E depois traz aqui!” - O guri encheu o peito e saiu correndo mais rápido do que tinha entrado, antes que a mãe mudasse de idéia ou que os protestos das outras mulheres a fizessem voltar atrás.
A la pucha, dar tiro de espingarda! E em coisa viva ainda! Com o coração aos pulos achou a coruja sentada em um moirão da cerca perto da casa, virando a cabeça pros lados com um olhar bem sério, com cara de quem não acha graça de nada. Pois a vidente emplumada deu azar, o guri tinha pontaria. No primeiro tiro a infeliz se foi “prás cucuia”, deixando um punhado de penas ainda borboleteando no ar acima do moirão onde estivera acomodada.
Missão cumprida, correu o guri de volta, com sua presa em mãos. Antes de entrar no quarto, refrenou o passo, por conta do silêncio solene que se instalou na atmosfera depois de ouvido o tiro. Escondeu o sorriso com certa dificuldade e mostrou orgulhoso e ofegante o resultado de sua pontaria.
Disse a Vó Mercês em tom de desafio “Viu? Viu só!? Se este bicho burro soubesse prever mesmo alguma coisa tinha ficado bem quieto no canto dele para não levar chumbo!”.
Tá aí a Tia Goga para comprovar a lição, lépida e faceira, contando causos e fazendo todas as vontades dos sobrinhos mimados, inclusive as minhas, até hoje, e espero que por muitos e muitos anos mais!

4 comentários:

Angie disse...

sabe consigo ler o texto e ouvindo vc contar... e é isso que torna o texto tão saboroso e prazeroso de ler ;)Só que tem um porém... de tão bom, é como o chocolate Bis... impossível comer um só!
Mil beijos...

Bláh Limberger disse...

Sabias que foram os teu comentários que me fizeram voltar a escrever? Muito obrigado, querida amiga.

Unknown disse...

É como te disse em emcontros no msn....continua escrevendo que os teus textos são muito bons de se ler. São divertidos, criativos.....! A-DO-REI!
Beijão!

Bláh Limberger disse...

Valeu Lulu, escrevo para não enlouquecer, mas um dia acabo acreditando nestes comentários! Obrigado!!!