segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Tudo Era Tão Claro

Antes, tudo era mais fácil. Eu acordava, te beijava e ia para a forja. Ainda sinto o cheiro da madeira começando a queimar, do forno começando a aquecer, do pão com azeite comido junto ao fogo. Escolher o metal, aquecer, moldar. Eu era o deus forjador, criando obras para matar. Cada martelada era como um carinho bruto, um desejo de luta, um medo de te deixar.
Ah, como era simples! Eles eram os maus invasores e nós os bons e terríveis vingadores. Vieram de longe, andando por aí, roubando esperanças, vidas, alegrias. Não chegaram até nós, mas chegaram muito perto. Perto demais. E o ódio frio nos cegou quando vimos do que eram capazes. Não foram mal recebidos, de acordo com o nosso costume, mas mesmo assim fizeram tudo aquilo.
Eles não sabiam que preparávamos um revide. Eu era um dos que mais apoiava e estimulava os nossos. “Não podemos deixar que venham e vão impunes! Hoje são nossos vizinhos, amanhã serão nossos filhos!”. Doava todo o meu tempo para o preparo das armas, mas nunca deixei de te beijar, companheira, amada.
Havia três gerações que não lutávamos, e ficaríamos mais treze de bom grado, mas nos provocaram. Cada arma levava um pouco do meu ódio, filhas terríveis, frias, querendo se aquecer em corpos recheados de sangue quente, penetrar até o profundo negro do coração dos malditos e lá dentro gritar bem alto que este lugar é nosso e ninguém pode invadi-lo e sair vivo.
Lembro-me da última noite antes de sairmos atrás deles. Nossa fúria amorosa, desespero, meu cheiro em ti e teu cheiro em minha alma, com uma morte intensa, quase dolorida, eu chorei. Naquela época só tu podias me ver chorando. Não era medo, era saudade do que eu não havia perdido, do teu riso, teu olhar não-domado, desafiador; e de raiva da audácia deles em pensar que poderiam invadir nossas vidas e ficar por isso mesmo. Eles pagariam.
Beijos, gritos, piadas, todos mentindo, menos teu choro, que me dando adeus dizia que a batalha seria difícil, quase impossível voltar. Disfarcei minha dor com um largo sorriso e te disse que já voltaria, como se estivesse indo até o rio dar um banho no cavalo. Quase imediatamente após sairmos, todos mostraram a verdadeira face preocupada, discutindo como chegaríamos até eles. Quinze dias seguindo rastros, alguns difíceis, outros ensanguentadamente claros. Juntando homens indignados pelo caminho, formamos um grupo grande, foi quando percebi que estava liderando o grupo.
Todos me consultavam sobre quando comer, dormir, que lado seguir. Na época pensei que o nosso deus da guerra havia tomado meu corpo, hoje sei que era o entusiasmo da caçada e o desejo de terminar logo e voltar para ti.
Eles eram muitos, diziam nossos batedores. Nos aproximamos devagar, fazendo a volta pelas árvores, tremendo com o nervosismo da luta, sentindo o cheiro de morte próxima e rezando para que fosse da morte deles. Desci do meu cavalo, contra o conselho dos amigos (sou melhor no chão, disse a eles) e, a um sinal meu, caímos sobre eles como animais loucos. Dei o exemplo, fui à frente, atingindo tudo que se movesse, gritando como um demente.
Não me orgulho do que fizemos, mas até hoje meu coração salta do peito ao lembrar daquilo. Meu braço era forte, tu o sabes, mas impressionou aos que estavam perto quando desceu sobre um deles que vinha correndo contra mim e esmagou seu grito com o mesmo peso que forçava o metal a tomar forma na forja. Aquilo foi um incentivo para todos, que lutaram com tal fúria que mesmo os feridos eram como leões, quanto mais machucados, mais perigosos.
O som terrível do aço batendo contra aço-osso-carne! Um golpe defendido, um chute, uma cabeçada (sou bom nisso!), giro, grito, ataco de novo, outra morte vingada. Chuto com raiva, pelos amigos que não puderam se defender. Enlouqueço e todos junto comigo também. Devia estar terrível, desfigurado, pois me lembro das faces apavoradas dos inimigos e amigos ao me olharem. Não vi quando acabou, só queria matar mais e mais, deus faminto, rouco, sujo e ferido. Contaram-me que cinco dos nossos tiveram que me agarrar para arrancar-me de cima do corpo de um maldito que, já sem vida, era uma massa desfigurada por minhas mãos nuas. Dois dias depois voltei a mim, amarrado, dolorido e tonto de fome. Fui saudado por todos com um medo reverente. Daí surgiu a lenda de que o deus lutou por nós, bebendo todo o sangue do inimigo, gritando palavras de poder pelo campo de batalha, chorando de alegria e fúria por tomar vidas.
A volta para casa! Voltei para ti, amada! Amigos que não voltaram, mulheres sem homens para abraçar, a alegria de chorar estas tristezas nos teus braços! Longos anos demoramos naquele beijo, todos os dias renovado várias vezes, até que, um dia, me deixastes, minha luz. Filhos, netos, amigos, nada importava mais do que teu olhar (fantástico!), nunca totalmente domado, sempre com um tempero de afronta, somente serenado com um sorriso meu. Como meu sorriso te transformava! Sabias que eu compreendia tua natureza selvagem e bebias em minha calma o amor sereno, enquanto eu tomava emprestado de ti a força, e nos completávamos.
Não viveste para ver nosso povo começar a negociar com aqueles malditos. Tempos mudam, dizem todos. Hoje, ninguém presta atenção ao velho que vive à beira do fogo (só teu calor me aquecia), contando antigas histórias do que eles fizeram aos nossos. Alguns ainda respeitam a figura do líder do passado, fera sem garras, mas acham que eu minto, e às vezes, chego a pensar que estão certos, que nunca houve luta. Nos poucos dias de sol (como o sol brilhava contigo aqui!), saio e vejo os malditos andando orgulhosos por nossas ruas. Às vezes, visito algum velho amigo, fantasma branco do passado colorido, e ficamos a alimentar nossos desgostos à beira do fogo (é sempre frio agora), até não suportarmos mais nossa amargura com estes tempos, nossos filhos não são homens, nossas filhas prostitutas, nossa gente se entregou.
Volto para casa (teu jardim morreu), para o fogo, que já não aquece, para a comida sem gosto (que tempero usavas?). Até hoje, juro, tento te enlaçar pela cintura, dormindo. Acordo e fico sem sono (não me chamavas de dorminhoco?), sem lágrimas, relembro de nós até o amanhecer, mais um dia sem ti. Mas tenho uma idéia que me alenta: é menos um dia sem ti! Espero desesperadamente pelo teu beijo, abraço apertado, meu sorriso no brilho do teu olho – meu deus, o som da tua risada! Penso nisso e me perturbo, minha garganta aperta, me afasto de todos, choro e chamo baixinho:Vem me buscar, meu amor!!!

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